" SOBRE A MORTE"

Este é um tema propriamente antropológico. Aqui o interesse está no aspecto especificamente escatológico da problemática da morte: o fato de que o fim da história começa para cada ser humano em sua morte.
Morte e escatologia na Bíblia. A tradição bíblica consagra muito mais atenção à escatologia comunitária que à individual. Não obstante, encontramos uma série de textos que desenvolvem a relação morte-escatologia que podem ser divididos em dois grupos, que são, por isso mesmo, complementares:
Aqueles que ensinam que com a morte termina o tempo de prova, de decisão: com a morte termina este tempo de decidir-se por ou contra Deus (Sb 2-5; Mt 13,37s; 25,34ss; Jo 3,17ss; 5,29; 12,47ss; particularmente: 2Cor 5,10 e Hb 9,27).
Aqueles que ensinam que com a morte começa a retribuição definitiva: esta idéia é desconhecida do AT; ela pressupõe a revelação neo-testamentária: Lc 23,42s (Ap 1,6). “A salvação definitiva não é uma realidade meramente escatológica, que atinja o homem somente numa existência pós-morte, senão que surte efeitos imediatos para quem optou pela comunhão com Cristo. Isto é bem expresso pelo termo paradeisos que designa o estado teminal da vida com Deus, é o símbolo da bem-aventurança. O cumprimento da esperança messiânica não se demora até o eschaton: é realidade que já se faz presente desde o hoje do sacrifício de Cristo. Outros textos: 2Cor 5,8; Flp 1,21-23.
“Em resumo: o Novo Testamento introduz no pensamento bíblico um fato novo, que acelerará o processo de evolução das idéias sobre o destino pós-mortal do homem. O fato novo é Cristo. Sua ressurreição consagrará de forma imprescritível o caráter escatológico da esperança ultraterrena, anunciada já pelo Antigo Testamento. Mas, por sua vez (e esta é a novidade com respeito às crenças vétero-testamentárias), Cristo proporciona a certeza de que a salvação não é um bem exclusivamente futuro, estritamente escatológico, no sentido temporal do término. O anunciado pelo Novo Testamento já não é algo meramente por vir em um futuro indeterminado”[2].
Em conclusão, Lc 23,43; Flp 1,23 e quem sabe mesmo 1Ts 4,14.16 e 2Cor 5,6-8 ensinam que, a partir de Cristo, os que morrem nele gozam desde já dessa perfeita comunhão com ele que é a vida eterna.
História da doutrina. Existe consenso em interpretar a morte o término do período de decisão pró ou contra Deus. “Pelo contrário, quanto ao fato de que o estado definitivo de vida ou morte eternas siga à morte, sem esperar ao final da história, tem sido amplamente controvertido até bem entrado o século XIV”[3].
A época patrística. Inácio de Antioquia, Clemente Romano e Policarpo afirmam o estado definitivo imediatamente após a morte (ao menos para os mártires).
Mas já entre os séculos II e IV, “a tendência predominante sustenta que a morte inaugura uma discriminação transitória, com uma retribuição ainda não perfeita, até o momento do juízo final”[4]. O primeiro a defender esta tese foi Justino (mas parece “que a crença em uma retribuição definitiva imediata se associava aos proverbiais pré-juízos dualistas contra a ressurreição”[5].
“Como se vê, o ensinamento dos Padres sobre nosso tema se debate entre o reconhecimento de uma retribuição imediata e a necessidade de reconhecer também a dilatação da retribuição plena. As indecisões em ponto de tão grande importância se explicam quando se tem em conta que a doutrina da retribuição imediata suscita duas sérias dificuldades: uma de caráter antropológico e outra de índole teológica. O problema antropológico reside na dificuldade de conceber como sujeito apto da retribuição não ao homem inteiro, mas a uma de suas partes (a alma). A dificuldade teológica está no peso que exerce sobre os Padres a importância dos acontecimentos finais – juízo, ressurreição – tão insistentemente inculcada pela Escritura, assim como a índole comunitária da vida eterna; uma bem-aventurança plena antes do eschaton não reduzirá severamente a transcendência deste?
A estes dois fatores (a preocupação anti-dualista e a vontade de fidelidade à Bíblia) teria que acrescentar que os lugares escriturísticos onde se ensina uma retribuição definitiva antes da ressurreição são –como podemos comprovar – muito escassos; é compreensível que se tenha necessitado tempo para atender a seu conteúdo.
Provavelmente o estímulo mais eficaz para um correto delineamento do problema tenha sido não tanto a reflexão especulativa quanto a práxis litúrgica, ou seja, o culto que se tributou primeiro aos mártires e logo ao resto dos santos, e que não teria sentido se não se lhes atribuísse já uma glorificação definitiva. Por isto, os problemas de fundo (a compatibilidade de uma escatologia individual com a escatologia coletiva) seguiram sem resolver-se; a tese de uma dilatação da plenitude da retribuição apresentava indubitável vantagem em ordem a sua solução. Isto explica seu reflorescimento na época medieval, que, por sua vez, dará lugar a uma declaração definitiva do magistério sobre o tema”[6].
Intervenção magisterial. O papa João XXII, em uma homilia no dia de todos os santos de 1331 retomou a questão, que já havia sido abandonada:
“…seguindo a São Bernardo, o pontífice distingue entre o seio de Abraão e o altar celeste. No seio de Abraão esperam os justos do Antigo Testamento e esperaremos todos, consolados pela visão da humanidade de Cristo, até a entrada no ‘gozo do Senhor’, que acontecerá com a ressurreição e o juízo. João XXII funda esta doutrina não só na autoridade de São Bernardo, mas em argumentos da Escritura (unicamente o juízo outorga a posse do reino de Deus) e de razão (para a perfeita bem-aventurança a alma precisa do corpo)”[7].
Esta homilia causou escândalo e o papa voltou por outras duas vezes a este assunto: em dezembro de 1331 e janeiro de 1332. Nesta última, o papa “estende a doutrina de uma dilatação da retribuição também para o caso dos réprobos, que habitam até o juízo no ar tenebroso, junto aos demônios”[8]. Embora sempre deixando claro que sua posição era sustentada como doutor privado. O próprio papa constituiu uma comissão para examinar a questão. Na véspera de sua morte revogou sua posição, escrevendo uma retratação [DS 990s] que foi publicada pelo seu sucessor, Benedito XII (que tinha sido o teólogo de confiança do papa e que já empreendera um estudo sistemático sobre o caso: De statu animarum sanctorum ante generale judicium, no qual negava a dilatação da visão beatífica, como queria João XXII).
Elevado a papa, Benedito XII “emitiu a constituição Benedictus Deus (DS 1000-1002), na qual ensina que tanto o estado de vida eterna, como o de morte eterna começa ‘imediatamente (mox) depois da morte’. Sendo que por vida eterna compreende a visão intuitiva do ser divino. Esta postura será confirmada pelo Concílio de Florença (DS 1305) e também pelo Vaticano II (LG 49: os justos já purificados “gozam da glória contemplando claramente a Deus mesmo, uno e trino, tal qual é”).
Reflexões teológicas. As dimensões da morte. O século XX vivenciou o drama da morte e refletiu sobre ele como em nenhum outro período. O fato antropológico mais indubitável é o da finitude – porque a morte o denuncia. A pergunta pelo significado da morte implica a pergunta pelo significado da vida, e vice-versa. Com a pergunta pelo significado da morte, aparecem muitas outras.
Algumas questões expressivas:
a) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sentido da vida”[9]. O homem é um ser para a morte: do ponto de vista biológico (Engels) e existencial-ontológico (Heidegger). Sua vida terá um sentido na medida em que o tenha sua morte. Uma morte sem sentido compromete a própria existência.
b) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o significado da história”[10]. Não é mais possível escamotear o significado da morte pessoal, como se fosse algo particular e secundário, um “sonho pequeno-burguês”. A morte do indivíduo compromete toda a história.
c) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre os imperativos éticos de justiça, liberdade, dignidade”[11]. É possível pregar estes valores de sujeitos contingentes que desaparecerão por completo com a morte? Teria sentido o martírio por uma destas causas?
d) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre a dialética presente-futuro”[12]. Vivemos uma situação presente sonhando com um futuro melhor; trabalhamos e sofremos por isso. Haverá uma relação entre este futuro e nós? Ou nossa geração será apenas um “andaime” para a geração escatológica?
e) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sujeito da esperança”[13].
f) “Em fim, a pergunta sobre a morte é uma variante da pergunta sobre a pessoa, sobre a densidade, irrepetibilidade e validade absoluta de quem a sofre”[14].
“Resumindo, a magnitude que se reconheça à morte está na razão direta da que se reconheça à seu sujeito paciente. A minimalização da morte é o índice mais revelador da minimalização do indivíduo mortal. E o inverso, uma ideologia que trivialize ao indivíduo, trivializará a morte. Pelo contrário, se a morte é captada como problema é porque o homem é apreendido como um valor que transcende o puro fato bruto”[15].
Teologia da morte. Diante das perguntas levantadas pela morte a resposta cristã é muito clara: a morte adquire um sentido desde a fé na ressurreição e da vida eterna.
O que se pretende fazer neste momento é uma leitura cristã da morte e do morrer.
“O homem da humanidade pecadora está submetido, segundo a Escritura, a uma morte que, na ordem se sua realização concreta, é pena do pecado, diante do qual não é livre mas escravo, e que se apresenta a ele como algo incompreensível, contra o que não pode senão rebelar-se. Mas houve um homem que morreu a morte humana de outro modo: como ato de suprema liberdade (‘ninguém tira minha vida; sou eu quem a da’: Jo 10,18) e de liberalidade (‘ninguém tem maior amor que o que dá a vida por seus amigos”: Jo 15,13). Cristo morreu a morte com a angústia que lhe é própria no que tem de necessidade imposta, mas por sua vez, na fé no Deus vivo, na esperança da ressurreição e na caridade para com os irmãos. Desta forma, a morte mudou de sentido. Não é já, necessariamente, visibilidade da culpa, pena do pecado; pode ser ato livre de fé, esperança e amor.
Esta inversão de sentido se patentiza sobretudo no fato de que Cristo morreu para ressuscitar. O ser-para-a-morte que, segundo a análise filosófica, é o homem, volta-se a sua vocação original (segundo a ordem querida por Deus na criação) de ser-para-a-vida. Tampouco o cristão morre para ficar morto, mas, igual a Cristo, para ressuscitar. Sua morte é, por conseguinte – em si mesma, e não somente no que está por trás dela – uma morte distinta da morte-pena do pecado. Não é fim, senão transito; não é término, senão páscoa, passagem da forma de existência provisória à forma de existência definitiva”[16].
Paulo descreve o cristão como quem reproduz em si os mistérios da vida de Cristo. Como para Cristo, “a morte para ele não é pena, mas um morrer com Cristo para ressuscitar com ele”[17]. A partir desta perspectiva, adquirem um sentido os sacramentos e as virtudes teologais. Só a fé pode iluminar um começo no que aparenta ser o fim, só a esperança permite substituir a angústia pela confiança e só a caridade possibilita entrega total.
“Pois bem, ali onde a morte é vivida como trânsito e não como término, com confiança e não com desespero (ainda que poderá ser uma confiança obscura e assediada pela angústia”, ali está presente – saiba-se ou não – a graça. (…) Ali onde a morte é vivida como cumprimento da existência ou como destino sereno e resignadamente aceito, ali acontece a morte cristã, ou seja, a morte que é confissão do Deus vivo. Esta confissão tem lugar: a) no reconhecimento de que a vida tinha um significado (já que, por hipótese, se aceita a morte como o que cumpre a vida); b) na submissão obediente aos próprios limites (na aceitação do próprio ser criatural). (…) O ato de morrer, em suma, é sempre e necessariamente um ato de fé (explícita ou implícita) ou um ato de incredulidade”[18].
Por fim, a morte conduz a pessoa à sua definitividade, ou seja, a fixa em seu destino. Coloca-se aqui a pergunta: “este caráter definitivo da morte é um momento interior à morte mesma, ou lhe advém exteriormente por vontade de Deus (por um convencional decreto divino)?”[19]. Todas as nossas análises nos levam a concluir pela primeira afirmação, negando aquilo que ficou conhecido como a “tese da opção final”.
“Se a vida tem sentido, e não é o jogo absurdo que pensava Sartre, a morte deve dar ao homem o permanecer durante a eternidade no que quis ser durante o tempo; e isto não em virtude de uma última e isolada decisão (como sustenta a teoria da opção final), que esvaziaria irremediavelmente a vida mesma, mas enquanto suma totalizante das atitudes vividas e acumulação sem futuro do inteiro passado, convertido já, de forma irreversível, em presente eterno. Ao ser a morte anulação de toda possibilidade de devir, é a facticidade consumada, ou, o que é o mesmo, ‘término do estado de prova por sua natureza’, segundo estipulava a fórmula escolástica em uso”[20].
Luiz Antonio Balini é Pároco de Quinta do Sol
Julho de 2010
[1] Esta apresentação do problema da morte humana é uma simples síntese de RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000. Penso ser importante publica-la aqui, pois não existe em lingua portuguesa uma tradução de sua obra. A fidelidade ao seu texto justifica as constantes citações literais.
[2] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.253.
[3] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.254.
[4] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.255.
[5] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.255.
[6] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.258.
[7] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.259.
[8] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.259.
[9] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.261.
[10] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.262.
[11] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.262.
[12] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.262.
[13] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.263.
[14] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.263
[15] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.264.
[16] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.265-6.
[17] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.266.
[18] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.267-8.
[19] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.268.
[20] RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.270


Fonte: http://www.diocesecampomourao.com.br/diocese2010/artigospadrebelini.html

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